A gestão de recursos hídricos e a operação de usinas hidrelétricas dependem criticamente de dados precisos e em tempo real. A telemetria hidrológica, que envolve a coleta remota de parâmetros como níveis de rios e reservatórios, vazão e índices pluviométricos, é fundamental para o planejamento energético, a previsão de cheias e secas, e a gestão ambiental. Sem informações confiáveis e contínuas, as concessionárias de energia enfrentam desafios significativos na otimização da geração, na garantia da segurança operacional e na conformidade regulatória.
Historicamente falando, a implementação de sistemas de telemetria em áreas remotas tem sido complexa. Tecnologias de rádio convencionais exigem infraestruturas de estações repetidoras, implicando altos custos de manutenção e desafios logísticos para o uso de áreas.
A rede Long Range (LORA) emergiu como uma alternativa promissora, oferecendo vantagens notáveis em termos de consumo energético em regiões rurais remotas, com requisitos mínimos de infraestrutura. Este avanço tecnológico abriu caminho para uma nova abordagem na telemetria hidrológica.
Nesse contexto, a Light Energia e a Altus uniram forças através do Programa de Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação (PDI) regulado pela Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) para desenvolver uma solução de alta disponibilidade de dados, baixo custo e baixo consumo de energia para a telemetria da hidrologia, utilizando a tecnologia LORA na rede LORAWAN. O sistema integra dataloggers, gateways e servidores privados.
Conheça quais foram os principais componentes do sistema
O sistema de telemetria hidrológica desenvolvido é uma solução integrada, composta por três pilares tecnológicos: o datalogger NL717, o gateway LORA GW700 e o Sistema de Acompanhamento Hidrológico da Light. A integração entre esses componentes foi fundamental para gerar alta disponibilidade e mais eficiência do sistema.
NL717: alta velocidade e segurança na transmissão de dados
O NL717 é um datalogger compacto, pertencente ao Sistema Nexto, projetado para expandir as capacidades de monitoramento e telemetria. Sua função principal é coletar dados de uma variedade de sensores, incluindo nível, chuva, diagnósticos e tensão de bateria, armazená-los internamente e transmiti-los.
Equipado com um processador ARM de 32 bits de alta velocidade, garantindo um processamento ágil dos dados. O dispositivo possui entradas digitais e analógicas integradas, todas com alta precisão, conforme exigido em aplicações de monitoramento hidrológico, geração de energia solar e outras áreas de processos críticos. Também conta com 4 entradas digitais (que podem atuar como entradas rápidas), 4 entradas rápidas (configuráveis como contadores rápidos ou interrupções externas) e 8 entradas analógicas de corrente.
Em termos de comunicação, o NL717 oferece múltiplas interfaces: uma interface Ethernet 10/100 Mbps que suporta protocolos como OPC UA, EtherNet/IP, MODBUS e MQTT, e um rádio LORA de longo alcance integrado. Este rádio opera na faixa de frequência de 915-928MHz, com taxas de transmissão que variam de 290 bps a 50 kbps, e é fornecido com uma antena de 2 dBi. Além disso, o NL717 também possui uma interface de comunicação SDI-12, permitindo a coleta de dados de sensores compatíveis. A alimentação estendida do dispositivo facilita sua aplicação com fontes alternativas de energia, como a solar. O dispositivo também possui um relógio de tempo real (RTC) com resolução de 1 ms e retentividade de 14 dias.
Gateway GW700: conectividade e versatilidade para conexões de longa distância
O gateway GW700 desempenha um papel central na arquitetura do sistema, atuando como a ponte entre os dataloggers NL717 e os servidores de rede. Sua principal funcionalidade é receber os dados transmitidos via rádio LORA pelos dataloggers na rede LoRaWAN e, em seguida, encaminhá-los para as aplicações que rodam nos network servers.
Ele possui uma interface Ethernet configurável através de uma interface web embarcada, o que simplifica sua gestão e integração na rede. Ele é projetado para conectar dispositivos e servidores LoRaWAN com baixo consumo de energia e bom alcance. A alimentação do GW700, assim como a do NL717, possui uma faixa de operação estendida, o que confere flexibilidade na sua implantação em diferentes ambientes.
Para garantir a robustez e a durabilidade em ambientes externos, o GW700 foi projetado com um gabinete com grau de proteção IP67, e a antena utilizada também atende a esses requisitos. Essa característica é essencial para a operação contínua em condições climáticas adversas, comuns em locais de monitoramento hidrológico. Ele funciona como um hub central para a comunicação LORA, permitindo o fluxo de dados críticos de sensores remotos para o software de monitoramento centralizado.
O Sistema de Acompanhamento Hidrológico da Light: a inteligência central
O Sistema de Acompanhamento Hidrológico da Light é um software inovador, desenvolvido para gerenciar e exibir os dados coletados, e representar a inteligência central do sistema de telemetria, oferecendo uma plataforma robusta e escalável.
As capacidades do sistema são abrangentes: ele recebe os dados dos dataloggers, armazena-os em um banco de dados e os exibe através de uma interface web, eliminando a necessidade de um sistema SCADA complexo. Através dessa interface, é possível cadastrar estações, sensores e curvas-chave, proporcionando flexibilidade na configuração do sistema.
A arquitetura do SAHL é redundante, o que contribui para a alta disponibilidade do sistema. Essa redundância é alcançada através da configuração de elementos e interfaces do sistema, incluindo servidores, gateways LORA e a própria comunicação dos dataloggers, para operarem de forma paralela e com mecanismos de fallback. Isso significa que, em caso de falha de um componente primário, um componente secundário assume automaticamente, garantindo a continuidade do fluxo de dados críticos e minimizando o tempo de inatividade.
A integração do SAHL com os demais componentes do sistema foi feita de forma meticulosa. Servidores foram adquiridos para a instalação do sistema de hidrologia, banco de dados, servidor FTP e Network Server LORA. Os dataloggers NL717 enviam os dados via protocolo FTP ou LORA para esses servidores. No projeto piloto, o SAHL foi configurado para operar em paralelo com o sistema legado existente da Light, o AMH (Ambiente de Monitoramento Hidrológico). Para garantir a compatibilidade, scripts foram desenvolvidos nos servidores para converter os arquivos recebidos dos dataloggers para o formato do AMH, permitindo que ambos os sistemas funcionassem simultaneamente sem interrupções.
O NL717 foi projetado com alta capacidade de redundância de comunicação com interfaces Ethernet e LORA integradas para proporcionar maior confiabilidade do sistema em ambientes remotos. Essa funcionalidade assegura que, se uma das interfaces de comunicação falhar – por exemplo, devido a uma interrupção na rede Ethernet ou a uma condição adversa que afete o sinal LORA –, o NL717 pode alternar para a outra interface disponível, mantendo o fluxo contínuo de dados para os servidores centrais, garantindo a alta disponibilidade de informações, reforçando a robustez do sistema de telemetria como um todo.
O processo de desenvolvimento
O desenvolvimento do sistema foi conduzido através de uma metodologia ágil, dividida e detalhada em múltiplos sprints, com testes extensivos e reavaliações contínuas, incluindo múltiplas rodadas de Testes de Aceitação em Fábrica (TAF), refletindo um compromisso inabalável com a robustez e a confiabilidade do sistema, priorizando a qualidade sobre a velocidade de entrega.
Veja um resumo dos objetivos e principais conquistas de cada sprint de desenvolvimento.
Sprint | Objetivo principal | Principais entregas | Desafios abordados |
1 | Revisão inicial e especificação | Definição de requisitos, análise de mercado, esquemas elétricos (Rev. A) | Integração de novas funcionalidades no portfólio Altus |
2 | Prototipagem e validação | Montagem de protótipos, projeto de fonte de alimentação, testes de campo LORA, revisão de circuitos (Rev. B) | Otimização do alcance LORA em diferentes terrenos |
3 | Desenvolvimento central e integração | Layout de placas, verificação de hardware, software embarcado, projeto de gabinete (GW700), arquitetura piloto | Integração de software com múltiplas interfaces de hardware |
4 | Verificação e certificação | Ensaios de EMC (ESD, Surge, Emissão), Homologação ANATEL, Testes de Aceitação em Fábrica (TAF) | Conformidade com normas regulatórias, robustez contra interferências |
5 | Implementação em campo | Instalação de servidores e equipamentos, integração com sistema legado (AMH), ajustes finais de sensores | Compatibilidade de formato de dados com sistemas legados, comunicação em postos com 4G |
Otimização da comunicação LORA
Os testes de campo iniciais revelaram desafios relacionados ao alcance e à confiabilidade da comunicação LORA, especialmente em áreas com relevo complexo. Por exemplo, testes na Ilha dos Pombos mostraram resultados insatisfatórios devido ao terreno entre os pontos de comunicação. Isso exigiu ajustes iterativos nas configurações dos rádios e modificações estratégicas nos pontos de envio e coleta para otimizar a comunicação. A persistência na otimização do rádio, que culminou em um alcance de 6,62 km em um segundo teste, demonstra que a implementação de tecnologias de longo alcance em ambientes reais exige uma abordagem adaptativa.
Robustez do hardware
Garantir a resistência do sistema contra interferências eletromagnéticas (EMC) e fatores ambientais adversos foi outro desafio crucial. Ensaios de Descarga Eletrostática (ESD) e Imunidade a Surtos de Tensão (Surge) foram realizados para verificar a capacidade do equipamento de suportar transientes e descargas atmosféricas. Além disso, os ensaios de emissão conduzida ajudaram a identificar problemas em certas frequências, principalmente relacionadas à fonte de alimentação, que exigiram o teste de diversas soluções de filtros até se chegar a um circuito definitivo que atendesse aos níveis de conformidade. Essa experiência ressalta a importância de um design de hardware robusto para garantir a operação confiável em ambientes exigentes.
A complexidade da integração de software
A integração do software embarcado com múltiplas interfaces de hardware distintas, como SDI-12, LORA, entradas digitais e analógicas, e a garantia de um fluxo de dados contínuo para os servidores centrais, apresentaram alguns desafios de integração.
Um exemplo foi a necessidade de compatibilidade com o sistema legado da Light. Para permitir que o novo sistema SAHL operasse em paralelo com o AMH, foram desenvolvidos scripts específicos que recebiam os arquivos dos dataloggers, os convertiam para o formato AMH e os encaminhavam, mantendo os originais para garantir uma transição suave e a continuidade operacional.
O projeto piloto Ilha dos Pombos
A fase de implementação em campo do sistema de telemetria hidrológica na Regional Ilha dos Pombos da Light foi um teste decisivo para a validação da solução em um ambiente operacional real e desafiador.
A Regional Ilha dos Pombos, localizada no Rio de Janeiro, é uma área geograficamente complexa e de importância crítica para a geração hidrelétrica da Light. A escolha deste local para o projeto piloto não foi por acaso; os testes iniciais de LORA na região já haviam revelado dificuldades de comunicação devido ao relevo. Essa seleção estratégica do local de implantação demonstra a ambição do projeto em enfrentar ambientes operacionais difíceis e comprovar a resiliência da solução onde os métodos tradicionais poderiam falhar. Ao provar a eficácia do sistema em um cenário tão exigente, sua aplicabilidade a outras localidades remotas, potencialmente menos desafiadoras, foi validada, conferindo grande credibilidade aos resultados alcançados.
A implantação em campo envolveu uma série de sucessos operacionais:
- – Configuração da infraestrutura: a instalação dos servidores na UHE Ilha dos Pombos e a preparação abrangente da infraestrutura de rede existente da Light foram realizadas para acomodar todos os equipamentos. A implantação estratégica de linhas de fibra ótica e dos gateways estabeleceu caminhos de comunicação robustos e confiáveis.
- – Integração: os dataloggers foram instalados de forma integrada nos painéis existentes dos postos, conectando-se diretamente a diversos sensores e estabelecendo comunicação com o servidor SAHL, tanto via LORA quanto por modems 4G, dependendo dos requisitos específicos de cada local.
- – Operação paralela com sistemas legados: um dos sucessos mais notáveis foi a implementação bem-sucedida de scripts sofisticados para garantir a compatibilidade e a operação paralela completa entre o novo sistema e o sistema legado. Essa integração permitiu a capacidade de operar em paralelo com a infraestrutura já existente.
- – Precisão dos dados de sensores: ajustes críticos foram feitos no sistema para garantir leituras corretas e retentivas dos sensores de chuva (mesmo após ciclos de energia) e para lidar com dados de múltiplos postos conectados a um único datalogger, assegurando a integridade e a consistência dos dados.
A validação do sistema no projeto piloto foi claramente evidenciada por resultados tangíveis:
- – Evidência visual da aquisição de dados: os testes executados mostraram que tanto o sistema AMH quanto o SAHL estavam adquirindo e exibindo com sucesso dados hidrológicos, incluindo nível, vazão e chuva acumulada. Essa prova confirma de forma inequívoca as capacidades de aquisição e exibição de dados do sistema.
- – Alta disponibilidade e confiabilidade: o projeto piloto demonstrou conclusivamente a capacidade do sistema de alcançar alta disponibilidade de dados e comunicação confiável, mesmo em um ambiente operacional desafiador e remoto. A demonstração bem-sucedida da aquisição de dados em tempo real e da operação paralela em um ambiente real valida a proposta de valor central do sistema: dados confiáveis e de alta disponibilidade para tomadas de decisão críticas.
O impacto estratégico
A solução desenvolvida possui uma relevância imensa para a Light Energia, dada sua dependência crítica de sistemas hidrológicos para a operação eficiente e segura de suas usinas hidrelétricas.
As características inovadoras do sistema, como as interfaces Ethernet e LORA integradas para transmissão de dados robusta e redundante, estabelecem um novo patamar para soluções de telemetria remota no setor energético.
Este projeto se alinha perfeitamente com a tendência global acelerada de adoção da Internet das Coisas Industrial (IIoT), particularmente o uso crescente de LoRaWAN para monitoramento remoto, rastreamento de ativos e manutenção preditiva em diversos setores industriais, demonstrando como desafios específicos de engenharia em infraestruturas críticas estão sendo superados através da integração estratégica de tecnologias cada vez mais avançadas, pipelines de dados seguros e software inteligente.
A jornada desde a concepção até a implantação em campo é um testemunho do poder da engenharia iterativa, da validação rigorosa e das parcerias estratégicas na concretização de soluções complexas, abrindo caminho para maior eficiência operacional, melhor tomada de decisão baseada em dados e maior integração na gestão de ativos vitais no setor de energia. O futuro da integração de sistemas automatizados dependerá cada vez mais de arquiteturas inteligentes, conectadas e seguras, desde a ponta até a nuvem, permitindo novos níveis de excelência operacional e sustentabilidade em um cenário industrial cada vez mais conectado.